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Editado por Harlequin Ibérica.

Uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 1992 Nora Roberts

© 2016 Harlequin Ibérica, uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Sinfonia inacabada, n.º 67 - Março 2016

Título original: Unfinished Business

Publicado originalmente por Silhouette® Books

 

Reservados todosos direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial.

Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura

coincidência.

® Harlequin e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença.

As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Dreamstime.com.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-7726-9

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S. L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Dedicatoria

Um

Dois

Três

Quatro

Cinco

Seis

Sete

Oito

Nove

Dez

Onze

Doze

Se gostou deste livro…

 

 

Para Laura Sparrow… Os velhos amigos são os melhores.

Um

 

«O que estou a fazer aqui?»

Enquanto conduzia pela rua principal, Vanessa não parava de pensar na mesma pergunta. A povoação tranquila de Hyattown mudara muito pouco em doze anos. Ainda continuava entre as ladeiras das Blue Mountains de Maryland, rodeada por terras onduladas de cultivo e bosques espessos. Os pomares e as vacas leiteiras chegavam até aos limites da povoação e, no interior da mesma, não havia semáforos, edifícios de escritórios ou o bulício do trânsito.

Ali só havia casas robustas e muito antigas, jardins sem cercas, crianças a brincar e roupa a secar ao vento. Vanessa pensou, com alívio e surpresa ao mesmo tempo, que tudo estava como o deixara. As calçadas continuavam cheias de gretas e de buracos e o cimento era quebrado pelas raízes dos carvalhos centenários que, naquele momento, estavam a começar a cobrir-se de folhas. Flores amarelas derramavam-se pelos muros e as azáleas exibiam a promessa de uma cor que ainda estava para vir. O açafrão via-se eclipsado pelos narcisos e as tulipas. Tal como acontecera na infância de Vanessa, os habitantes de Hyattown continuavam a tomar conta da relva e das plantas dos seus jardins aos sábados à tarde.

Alguns levantaram o olhar, provavelmente, surpreendidos ao ver que passava um carro que não lhes parecia familiar. De vez em quando, alguém cumprimentava com a mão, embora não fosse porque a reconhecia, mas apenas por costume. Depois, continuava a tomar conta das plantas ou a cortar a relva. Através da janela aberta do veículo, Vanessa sentiu o cheiro da erva acabada de cortar, dos jacintos e da terra cavada. Ouviu o barulho dos motores das máquinas de cortar relva, o latido de um cão e os gritos e as gargalhadas das crianças a brincar.

Havia dois homens sentados num banco, com chapéus de jardineiro, camisas aos quadrados e calças de trabalho, que estavam a conversar. Um grupo de rapazes subia pela rua de bicicleta, provavelmente, a caminho da loja de Lester para comprar guloseimas ou bebidas frias. Ela subira por aquela encosta centenas de vezes com o mesmo destino. «Há cem anos», pensou. Então, sentiu a pontada familiar no estômago.

«O que estou a fazer aqui?», voltou a pensar, enquanto tirava uma caixa de antiácidos da mala. Ao contrário da vila, ela mudara. Às vezes, quase não se reconhecia.

Queria acreditar que estava a fazer o correto. Regressava, embora não soubesse se o fazia para o seu lar. Não sabia se aquele continuava a ser o seu lar… Ou se ela própria queria que fosse.

Acabara de fazer dezasseis anos quando saíra dali… Quando o pai a arrancara daquelas ruas tranquilas para a embarcar numa voragem de cidades, ensaios e atuações. Nova Iorque, Chicago, Los Angeles, Londres, Paris, Madrid… Fora muito emocionante, uma montanha russa de vistas, sons e, sobretudo, música.

Com vinte anos, graças ao impulso do pai e ao seu próprio talento, transformara-se numa das pianistas mais jovens e de mais êxito do país. Ganhara o prestigioso concurso Van Cliburn com apenas dezoito anos, enfrentando adversários que eram dez anos mais velhos do que ela. Tocara para a realeza e jantara com os presidentes de muitos países. Concentrara-se exclusivamente na carreira e forjara uma reputação como uma artista brilhante e temperamental. A atraente e apaixonada Vanessa Sexton.

Naquele momento, com vinte e oito anos, regressava ao lar da sua infância, à mãe que não via há doze anos.

Quando estacionou o carro, o ardor que sentiu no estômago pareceu-lhe tão familiar que quase não se apercebeu. Como o resto da vila, a casa da sua infância estava virtualmente igual a quando se fora embora. Os tijolos robustos tinham envelhecido bem e as paredes mostravam uma camada recente de tinta de uma cor azul quente e profunda. Ao longo do muro de pedra que se erguia por cima da calçada havia uns arbustos espessos de peónia que demorariam pelo menos outro mês a florescer. As azáleas agrupavam-se ao longo da casa.

Vanessa permaneceu sentada, agarrando o volante com força e enfrentando uma necessidade desesperada de voltar a pôr o carro a trabalhar e ir-se embora dali. Já se deixara levar demasiado pelos impulsos. Comprara um Mercedes descapotável e fizera a sua última atuação depois de rejeitar dúzias de compromissos. Tudo por se deixar levar pelos impulsos. Ao longo da sua vida adulta, todo o seu tempo estivera meticulosamente organizado. Apesar de ser uma mulher impulsiva por natureza, aprendera a importância de ter uma existência ordenada. Regressar ali, reabrir velhas feridas e despertar as lembranças não fazia parte daquela ordem.

No entanto, se se virasse naquele momento, se fugisse, nunca conseguiria as respostas para as suas perguntas, perguntas que nem sequer ela compreendia.

Decidiu não se dar mais tempo para pensar e saiu do carro para tirar as malas. Se se sentisse incomodada não tinha de ficar. Era livre para ir para onde quisesse. Era uma mulher adulta, que viajara muito e que contava com segurança económica. O seu lar, se decidisse ter um, podia ser em qualquer lugar do mundo. Desde a morte do pai, que acontecera há seis meses, não tinha compromissos.

Contudo, decidira estar ali e era ali que tinha de estar… Pelo menos, até conseguir respostas para as suas perguntas.

Atravessou a calçada e subiu os cinco degraus de cimento. Apesar da força com que o coração batia, endireitou os ombros. O pai nunca permitira que tivesse os ombros caídos. A sua apresentação era tão importante como a apresentação da música. Com o queixo erguido e os ombros direitos dirigiu-se para a casa.

Quando a porta se abriu, deteve-se, como se tivesse os pés enraizados ao chão. Imóvel, observou como a mãe saía para o alpendre.

Dúzias de imagens apareceram na sua mente. Recordou o primeiro dia de escola, quando subira, cheia de orgulho, aqueles mesmos degraus para ver que a mãe a esperava à porta. A altura em que caíra da bicicleta e se aproximara da casa a coxear para que a mãe lhe limpasse os arranhões e fizesse desaparecer a dor com um beijo. Quando dançara de alegria no alpendre depois do seu primeiro beijo. A mãe, com a intuição feminina refletida nos olhos, esforçara-se para não fazer nenhuma pergunta…

Então, lembrou-se da última vez que estivera ali. Daquela vez, afastava-se da casa em vez de se dirigir para ela e a mãe não estava no alpendre para se despedir.

– Vanessa…

Loretta Sexton observava-a, retorcendo as mãos. O cabelo castanho-escuro não se tornara grisalho. Estava mais curto do que Vanessa se lembrava e flutuava à volta de um rosto que mostrava muito poucas rugas. Um rosto mais redondo, com feições mais suaves do que as que Vanessa recordava. De certo modo, parecia mais pequena. Não estava encurvada, mas parecia mais compacta, mais em forma, mais jovem. Vanessa recordou o pai. Magro, demasiado magro, pálido e velho.

Loretta quis correr para a filha, mas não pôde. A mulher que estava à frente da casa não era a menina que perdera e de quem tanto sentira a falta. «Parece-se comigo», pensou, tentando conter as lágrimas. «Mais forte, mais segura, mas tão parecida comigo…»

Vanessa ganhou coragem, como fizera centenas de vezes antes de sair para o palco, e continuou a andar para a casa, subiu os degraus de madeira e parou à frente da mãe. Eram quase da mesma altura. Aquilo foi algo que as assustou. Os seus olhos, do mesmo tom esverdeado, entreolharam-se fixamente.

Estavam de pé, a poucos centímetros de distância, mas não se abraçaram.

– Agradeço-te muito por me teres deixado vir – declarou Vanessa. Odiava a tensão que sentia na sua própria voz.

– Aqui, és sempre bem-vinda – afirmou Loretta, depois de pigarrear. – Lamentei o que aconteceu ao teu pai.

– Obrigada. Alegra-me ver que tens bom aspeto.

– Eu… – sussurrou Loretta. O que podia dizer para apagar a amargura de doze anos perdidos? – Havia… Havia muito trânsito na estrada?

– Não, pelo menos, depois de sair de Washington. Foi uma viagem muito agradável.

– Apesar de tudo, deves estar muito cansada. Entra e senta-te.

Quando seguiu a mãe para o interior da casa, Vanessa apercebeu-se de que a mãe mudara a decoração. Os espaços eram muito mais luminosos do que recordava. O lar imponente da sua infância fora acolhedor, mas o papel de parede formal e escuro fora substituído por cores acastanhadas. Retirara a alcatifa para deixar a descoberto um chão de madeira de pinho que se via decorado por tapetes coloridos. Havia antiguidades, muito bem restauradas, e sentia-se o cheiro das flores frescas. Compreendeu que era o lar de uma mulher. De uma mulher com recursos e bom gosto.

– Provavelmente, gostarias de subir para desfazer a mala – sugeriu Loretta, parando à frente das escadas. – A menos que tenhas fome…

– Não, não tenho fome.

Loretta assentiu levemente e começou a subir as escadas.

– Pensei que gostarias de dispor do teu antigo quarto, embora o tenha decorado um pouco.

– Estou a ver.

– Continua a ter uma vista do jardim traseiro.

– Tenho a certeza de que servirá.

Loretta abriu uma porta e Vanessa seguiu-a para o interior do quarto.

Não havia bonecas nem peluches. Não havia cartazes, diplomas ou certificados pendurados nas paredes. Desaparecera a cama estreita sobre a qual sonhara quando era criança, tal como a secretária sobre a qual tanto sofrera ao estudar os verbos franceses e a geometria. Já não era o quarto de uma criança, era o quarto de um convidado.

As paredes estavam pintadas de cor de marfim. Das janelas pendiam umas cortinas bonitas às flores. Havia uma cama com dossel, coberta com um edredão castanho e almofadas macias. Numa secretária elegante havia uma jarra de cristal com umas flores fragrantes. O cheiro das flores secas fluía pela divisão desde a cómoda.

Loretta, que se sentia muito nervosa, percorreu o quarto para esticar o edredão e retirar um pouco de pó imaginário da cómoda.

– Espero que te sintas confortável aqui. Se precisares de alguma coisa, só tens de pedir.

Vanessa sentiu-se como se fosse alojar-se num hotel elegante e exclusivo.

– É um quarto lindo. Estarei bem, muito obrigada.

– Ainda bem – afirmou Loretta. Voltou a retorcer as mãos. Ansiava tanto tocar, abraçar… – Gostarias que te ajudasse a desfazer a mala?

– Não – replicou Vanessa, tentando esboçar um sorriso. – Posso fazê-lo sozinha.

– Muito bem. A casa de banho é…

– Lembro-me.

Loretta não soube o que dizer. Com um ar indefeso, começou a olhar pela janela.

– É óbvio. Se precisares de alguma coisa, estarei no andar de baixo – replicou. Então, deixou-se levar pela necessidade e emoldurou o rosto de Vanessa com as mãos. – Bem-vinda a casa.

Com isso, foi-se embora rapidamente e fechou a porta.

Quando se encontrou sozinha, Vanessa sentou-se na cama. Os músculos do estômago ardiam, como se tivesse cordas atadas no seu interior. Apertou a mão na barriga e estudou o quarto que fora dela uma vez. Como era possível que a vila tivesse mudado tão pouco e que aquele quarto, o seu quarto, fosse tão diferente? Talvez acontecesse o mesmo com as pessoas. Talvez tivessem um aspeto parecido, mas, no interior, fossem completos desconhecidos.

Como ela própria.

Era diferente da menina que vivera naquela casa uma vez? Reconhecer-se-ia? Quereria fazê-lo?

Levantou-se para parar à frente do espelho que havia num canto. O rosto e as formas eram familiares. Examinava-se cuidadosamente antes de cada concerto para se certificar de que a sua aparência era perfeita. Era o que se esperava dela. Costumava usar o cabelo bem penteado, apanhado por cima da cabeça ou na nuca, mas nunca solto. Quando saía para o palco, estava sempre maquilhada, embora não muito. A sua roupa era subtil e elegante. Aquela era a imagem de Vanessa Sexton.

Naquele momento, tinha o cabelo despenteado pelo vento, mas não havia ninguém ali para a julgar ou ver. Era do mesmo tom castanho-escuro que o da mãe, embora mais comprido. Tocava-lhe suavemente nos ombros e podia emitir reflexos do tom do fogo com a luz do sol ou brilhar suavemente com a da lua. Os olhos pareciam estar fatigados, mas aquilo não era inusual. Naquela manhã tivera um cuidado especial com a maquilhagem, para que as maçãs do rosto marcadas e os seus lábios mostrassem uma cor subtil. Vestia um fato cor-de-rosa, com casaco entalhado e saia comprida. Ficava-lhe um pouco largo na cintura, mas ultimamente o seu apetite não fora muito bom.

«Tudo isto continua a ser apenas uma imagem», pensou. A de uma mulher adulta e segura de si própria. Desejou poder voltar atrás no tempo para poder ver-se quando tinha apenas dezasseis anos, cheia de esperança, apesar da tensão que enchia a casa. Cheia de sonhos e de música.

Com um suspiro, virou-se e começou a desfazer a mala.

 

 

Quando era criança, parecera-lhe natural usar o quarto como santuário. Depois de ajeitar a roupa pela terceira vez, Vanessa recordou-se que já não era uma criança. Não regressara para encontrar o vínculo que perdera com a mãe? Se ficasse a sós naquele quarto, não conseguiria achá-lo.

Enquanto descia as escadas, ouviu um rádio que soava na parte traseira da casa. Da cozinha. A mãe sempre preferira a música popular à clássica, algo que sempre irritara o pai de Vanessa. Naquele momento, ouvia-se uma velha balada de Elvis Presley, profunda e solitária. Dirigiu-se para o lugar de onde provinha o som e deteve-se à porta da que sempre fora a sala da música.

O velho piano de cauda desaparecera, tal como o aparador enorme e pesado que continha partituras. No seu lugar, havia umas cadeiras pequenas, de aspeto frágil, com almofadas de ponto de cruz. Num canto, havia uma mesa para o chá, sobre a qual se destacava um vaso com uma planta verde e frondosa. Das paredes pendiam aguarelas emolduradas em molduras estreitas e havia um sofá de estilo vitoriano à frente das janelas.

Tudo isso estava à volta de uma bonita espineta. Vanessa aproximou-se imediatamente e, muito suavemente, apenas para si, tocou os primeiros acordes de uma peça de Chopin. Tinha um som tão mecânico que compreendeu que o piano era novo. A mãe tê-lo-ia comprado depois de receber a carta em que a filha lhe dizia que ia regressar? Seria um gesto, uma tentativa, de criar uma ponte sobre aqueles doze anos perdidos?

Enquanto esfregava as têmporas para tentar travar os inícios de uma dor de cabeça, Vanessa pensou que não podia ser tão simples. Ambas sabiam. Virou as costas ao piano e dirigiu-se para a cozinha.

Encontrou Loretta lá, a acabar de fazer uma salada que pusera numa tigela verde-clara. A mãe sempre gostara dos objetos bonitos, frágeis e delicados. Isso via-se nos centros de mesa de renda, no açúcar cor-de-rosa e na coleção de objetos de cristal que tinha numa estante. Abrira a janela e uma brisa fragrante, de primavera, fazia ondear as cortinas sobre o lava-louça.

Quando se virou, Vanessa verificou que tinha os olhos vermelhos. Apesar de tudo, sorriu e falou num tom claro.

– Sei que disseste que não tinhas fome, mas pensei que gostarias de comer um pouco de salada e beber um chá gelado.

– Obrigada – agradeceu Vanessa, com um sorriso. – A casa está linda. De certo modo, parece maior. Eu sempre tinha ouvido dizer que as coisas encolhiam à medida que alguém ia crescendo.

Loretta desligou o rádio. Vanessa lamentou o gesto, já que significava que dependiam delas próprias para preencher o silêncio.

– Antes, havia muitas cores escuras – comentou Loretta. – E muitos móveis muito pesados. Às vezes, sentia-me como se os móveis fossem rebelar-se contra mim e expulsar-me da divisão… Contudo, guardei algumas das peças, as que pertenciam à tua avó. Estão no sótão. Pensei que talvez as quisesses.

– Talvez algum dia – concedeu Vanessa, porque lhe pareceu mais fácil. Sentou-se enquanto a mãe servia a salada colorida. – O que fizeste com o piano?

– Vendi-o – esclareceu Loretta, enquanto pegava num jarro de chá. – Há anos. Parecia-me uma estupidez guardá-lo quando não havia ninguém aqui para o tocar. Além disso, eu sempre o tinha odiado… Lamento – acrescentou, depois de pousar o jarro na mesa.

– Não tens de te explicar. Compreendo-o.

– Não, não penso que compreendas. Não penso que consigas – replicou Loretta, olhando para ela muito fixamente.

Vanessa não queria aprofundar muito. Pegou no garfo e ficou em silêncio.

– Espero que essa espineta seja boa. Não sei muito sobre instrumentos musicais.

– É muito bonita.

– O homem que ma vendeu disse-me que era a melhor. Sei que precisas de praticar, portanto, pensei… Em qualquer caso, se não gostares dela, só tens de…

– É boa – concluiu Vanessa. Comeram em silêncio até ela conseguir recordar as boas maneiras. – A vila parece a mesma – comentou, num tom alegre e cortês. – A senhora Gaynor ainda vive na casa da esquina?

– Oh, sim! – exclamou Loretta. Aliviada, começou a conversar. – Já tem quase oitenta anos, mas ainda continua a sair para dar um passeio todos os dias, chova ou faça sol, para ir à agência de correios buscar as suas cartas. Os Breckenridge mudaram-se há cerca de cinco anos. Foram para o sul. Uma família muito agradável comprou a casa deles. Têm três filhos. O mais novo acabou de começar a escola este ano. É um diabinho. Ah! Lembras-te de Rick, o menino dos Hawbaker? Costumavas cuidar dele.

– Lembro-me de que me pagavam um dólar por hora e que esse pequeno monstro com aparelho nos dentes me enlouquecia.

– Sim – confirmou Loretta, rindo-se. Vanessa compreendeu que aquele era um som que não esquecera ao longo de todos aqueles anos. – Agora, está na universidade, com uma bolsa de estudo.

– É-me difícil de acreditar.

– Veio ver-me quando regressou a casa no último Natal. Perguntou-me por ti. Joanie continua aqui.

– Joanie Tucker?

– Agora, chama-se Joanie Knight. Casou-se há três anos com o jovem Jack Knight. Têm um bebé lindo.

– Joanie – murmurou Vanessa. Joanie Tucker fora a sua melhor amiga, a sua confidente, o seu apoio e a sua sócia, – tem um filho…

– É uma menina. Chama-se Lara. Têm uma quinta nos subúrbios da vila. Tenho a certeza de que gostaria de te ver.

– Sim – acedeu Vanessa. Pela primeira vez em todo o dia, sentiu que algo encaixava no seu interior. – Sim, eu também gostaria de a ver. E os pais? Estão bem?

– Emily morreu há quase oito anos.

– Oh… – sussurrou Vanessa. Então, estendeu instintivamente a mão para tocar na da mãe. Tal como Joanie fora a sua melhor amiga, Emily Tucker fora a da mãe. – Lamento muito…

Loretta olhou para as mãos unidas e os olhos encheram-se de lágrimas.

– Ainda tenho muitas saudades.

– Era a mulher mais amável que conheci. Oxalá tivesse… – murmurou. No entanto, apercebeu-se imediatamente de que já era demasiado tarde para se lamentar. – E o doutor Tucker? Está bem?

– Ham está fantástico – afirmou Loretta. Pestanejou para evitar as lágrimas e tentou não se sentir desiludida quando Vanessa retirou a mão. – Sofreu muito, mas a sua família e o seu trabalho ajudaram-no a superá-lo. Alegrar-se-á muito por te ver, Van.

Ninguém a chamava assim há mais anos do que conseguia recordar. Ouvir aquele nome emocionou-a.

– Continua a ter um consultório em casa?

– É óbvio… Não estás a comer nada. Queres comer outra coisa?

– Não, a salada serve – declarou Vanessa. Então, comeu um pouco de salada.

– Não queres saber nada de Brady?

– Não – replicou Vanessa. – Não especialmente.

– Tenho de te dizer que Brady Tucker decidiu seguir os passos do pai.

– É médico? – perguntou Vanessa, espantada.

– É verdade. Criou uma carreira importante num hospital de Nova Iorque. Penso que Ham me disse que era chefe de alguma coisa.

– Sempre pensei que Brady acabaria a jogar em alguma equipa de futebol ou na prisão.

Loretta riu-se.

– A maioria das pessoas pensava o mesmo, mas transformou-se num homem muito respeitável. É óbvio, sempre foi demasiado bonito para o seu próprio bem.

– Ou para o dos outros – murmurou Vanessa. A mãe voltou a sorrir.

– As mulheres acham sempre difícil resistir aos homens altos, morenos e bonitos, especialmente se também forem mauzinhos. Na verdade, nunca fez nada de mal – indicou Loretta, – embora tenha dado mais de uma dor de cabeça a Emily e a Ham. Bom, na verdade, muitas dores de cabeça. No entanto, ele sempre tomou conta da irmã, coisa de que gostei muito. E gostava muito de ti.

Vanessa fez um ar de desaprovação.

– Brady Tucker gostava de qualquer pessoa que tivesse saias.

– Era muito jovem – indicou Loretta. Pensou que todos o tinham sido enquanto olhava para a desconhecida séria e encantadora que era a filha. – Emily disse-me que não parava de dar voltas pela casa quando… Quando o teu pai e tu foram para Europa.

– Foi há muito tempo – replicou Vanessa. Levantou-se para não continuar a falar do assunto.

– Eu tomo conta da loiça – anunciou Loretta, enquanto começava a empilhá-la rapidamente. – Hoje é o teu primeiro dia. Talvez queiras tocar piano. Eu gostaria de voltar a ouvir a tua música nesta casa.

– Muito bem – acedeu. Então, dirigiu-se para a porta.

– Van?

– Sim?

Alguma vez voltaria a chamar-lhe «mamã»?

– Quero que saibas que estou orgulhosa do que conseguiste.

– A sério?

– Sim – confirmou Loretta. Estudou a filha, desejando ter coragem para lhe dar um abraço. – Só gostaria que tivesses um aspeto mais feliz.

– Sou bastante feliz.

– Dirias o mesmo se não fosse assim?

– Não sei. Na verdade, já não nos conhecemos.

Loretta pensou que, pelo menos, a resposta era sincera. Dolorosa, mas sincera.

– Espero que fiques o tempo suficiente para que possamos conhecer-nos outra vez.

– Estou aqui porque preciso de respostas, embora ainda não esteja disposta a fazer as perguntas.

– Dá-lhe tempo, Van, mas acredita quando te digo que sempre desejei o melhor para ti.

– O meu pai dizia sempre o mesmo – indicou Vanessa, suavemente. – Não achas estranho que, agora que sou uma mulher adulta, não saiba o que isso é?

Dirigiu-se para a sala de música. Sentia uma dor que a corroía por baixo do esterno. Como tinha por costume, tirou uma pastilha do bolso da saia antes de se sentar à frente do piano.

Começou com a Sonata ao Luar de Beethoven. Tocou-a sem partitura, de cor e de coração. Deixou que a música a tranquilizasse. Recordava ter tocado aquela peça e centenas de outras naquela mesma sala. Hora após hora, dia após dia, por amor à arte, embora frequentemente, possivelmente demasiado, porque era o que se esperava dela.

Sempre tivera sentimentos contraditórios em relação à música. Sentia um amor forte e apaixonado por ela e uma necessidade forte de a interpretar com a habilidade que lhe tinham ensinado. No entanto, além disso, sentira a necessidade imperiosa de agradar ao pai, de alcançar o ponto de perfeição que ele esperava. Naquele momento, pareceu-lhe que era quase impossível chegar a tanta excelência.

O pai nunca compreendera que a música era algo que gostava de fazer, não uma vocação. Fora um modo de se expressar, de se reconfortar, mas nunca uma ambição. Nas poucas ocasiões em que tentara explicá-lo, enfurecera-se ou impacientara-se tanto que Vanessa decidira ficar em silêncio. Ela, que era conhecida pela paixão e o temperamento, comportara-se como uma menina atemorizada ao lado do pai. Nunca fora capaz de o desafiar.

Trocou Beethoven por Bach, fechou os olhos e deixou-se invadir pela música. Tocou durante mais de uma hora, perdida na beleza, no génio das composições. Aquilo era o que o pai nunca compreendera. Não entendia que pudesse tocar pelo seu próprio prazer e ser feliz com isso, que odiasse e sempre tivesse odiado estar sentada num palco, rodeada de focos e a tocar para milhares de pessoas.

À medida que os seus sentimentos começaram a fluir novamente, começou a tocar Mozart, um compositor que requeria mais paixão e velocidade. A música surgiu através dela com viveza, quase com fúria. Quando o último acorde ecoou, sentiu uma satisfação que quase esquecera.

O aplauso suave que ouviu atrás das costas fê-la virar-se. Sentado numa daquelas poltronas tão elegantes havia um homem. Embora Vanessa tivesse o sol nos olhos e tivessem passado doze anos, reconheceu-o imediatamente.