cover.jpg
portadilla.jpg

 

 

Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2011 Harlequin Books S.A. Todos os direitos reservados.

NOITE ESCANDALOSA, N.º 1442 - Fevereiro 2013

Título original: The Tortured Rake

Publicado originalmente por Mills & Boon®, Ltd., Londres.

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ®, Harlequin, logotipo Harlequin e Sabrina são marcas registadas por Harlequin Books S.A.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2531-4

Editor responsável: Luis Pugni

Imagens de capa:

    Homem: CURAPHOTOGRAPHY/DREAMSTIME.COM

    Cidade: WEI-CHUAN LIU/DREAMSTIME.COM

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Os Wolfe

 

Uma dinastia poderosa em que os segredos e o escândalo nunca dormem.

 

A dinastia

Oito irmãos muito ricos, mas sem a única coisa que desejam: o amor do seu pai. Uma família destruída pela sede de poder de um homem.

 

O segredo

Perseguidos pelo seu passado e obrigados a triunfar, os Wolfe espalharam-se por todos os cantos do planeta, mas os segredos acabam sempre por vir à superfície e o escândalo está a começar a despertar.

 

O poder

Os irmãos Wolfe tornaram-se mais fortes do que nunca, mas escondem corações duros como o granito. Diz-se que inclusive a mais negra das almas pode curar-se com o amor puro. No entanto, ainda ninguém sabe se a dinastia conseguirá ressurgir.

 

 

Às minhas companheiras autoras «Wolfe»: Caitlin, Abby, Robyn, Lynn, Jeannette, Jennie e Kate. Foi muito divertido trabalhar nesta série convosco. São um grupo fantástico de mulheres com talento e estou desejosa de ler as histórias finais.

Capítulo 1

 

Estavam à espera que fracassasse.

Nathaniel Wolfe, o mau rapaz de Hollywood e objeto das fantasias eróticas de milhões de mulheres, estava sozinho nos bastidores do famoso London Theatre, a ouvir o murmúrio inquieto do público que aguardava o início da peça.

Podia dividi-lo claramente em dois grupos: mulheres que tinham ido verificar se o seu físico estava à altura do que aparecia no grande ecrã e homens que tinham ido ver se sabia representar.

As expectativas estavam elevadas desde que anunciara que interpretaria o papel principal numa versão moderna de Ricardo II, de Shakespeare. Pensavam que não seria capaz de o fazer. Achavam que os prémios, os aplausos, os êxitos de bilheteira, tudo era o resultado de um bom trabalho de câmara e de uma cara bonita. Pensavam que não tinha talento.

Um sorriso cínico apareceu nos seus lábios. Ia desfazer aqueles preconceitos. No dia seguinte ninguém questionaria o seu talento. Os títulos não seriam «Será o grande Wolfe capaz de interpretar Shakespeare?», mas «O grande Wolfe silencia a crítica com uma atuação impressionante». Ia mostrar-lhes um registo interpretativo de emoções como nunca antes se vira no teatro.

O encenador estava nos bastidores e olharam-se durante um breve instante. Fora uma colaboração tormentosa, Nathaniel insistia em interpretar o papel à sua maneira e o encenador resistia. Entre eles produzira-se uma magia que sabiam que passaria à história do teatro.

O momento aproximava-se. Nathaniel fechou os olhos e isolou-se do mundo exterior. Era o mesmo ritual de sempre. Ao fim de alguns instantes, Nathaniel Wolfe deixaria de existir. Seria Ricardo, rei de Inglaterra.

Era o que fazia, convertia uma personagem em alguém real. Não representava a personagem, convertia-se nela. Aos nove anos, tinha descoberto que conseguia pôr-se na pele de outra pessoa e esconder-se lá. Fora uma maneira de escapar da escuridão que rodeava a sua vida. Podia ser quem quisesse. Um cavaleiro, um ninja, um caçador de dragões, um vampiro, um super-herói. Representar começara como um escape e convertera-se rapidamente num disfarce. E era assim que gostava de viver, sozinho e disfarçado, sem depender de ninguém.

Não lhe representava nenhum problema ser outra pessoa. O que lhe causava problemas era ser Nathaniel Wolfe.

 

 

– O vestido não a faz gorda – Katie puxou os cordões do espartilho. – A cor é linda e acho que está fantástica. Além disso, é a duquesa de Gloucester. Supõe-se que deve ter um aspeto... – calou-se quando a atriz olhou para ela. – Autoritário. De uma mulher com experiência.

– Estás a dizer que sou gorda e velha?

– Não! Escolhi o vestido com muito cuidado – dando-se conta de como aquilo podia ser interpretado, Katie preparou-se para mais impropérios. – Interpreta o papel de uma viúva desconsolada, portanto, não pode ter um aspeto alegre e feliz.

– Estás a tentar dizer-me como representar?

– Não, estou a tentar dizer-lhe que está perfeita para interpretar este papel. Por favor, tente relaxar.

– Como vou relaxar se tenho de atuar ao lado de Nathaniel Wolfe? É sarcástico, cortante, com mudanças de humor... Ontem, quando cometi aquele pequeno erro...

– Só olhou para si – tranquilizou-a Katie. – Não disse nada.

– Não sabes o quanto pode dizer um olhar, sobretudo se vier dos olhos de Nathaniel Wolfe. Quando nos olha é como se nos atravessasse um raio laser – cada vez mais agitada, a atriz assinalou a porta com a mão. – Vai-te embora. Preciso de ter gente à volta que compreenda o meu temperamento.

«Mal-humorado e irritável?», perguntou-se Katie.

– Ainda tenho de lhe subir o fecho do vestido – apercebeu-se de que lhe tremiam as mãos. – Ouça, estamos todos nervosos...

– Porque haverias de estar nervosa?

– Bom... – durante um instante, Katie esteve prestes a falar-lhe das reuniões que tinha tido com uma estilista britânica muito importante e o que estava em jogo. Esteve prestes a dizer-lhe que as suas dívidas eram tão grandes que passava as noites a fazer contas para tentar encontrar uma maneira de pagar tudo o que devia. Se corresse tudo bem, no dia seguinte, isso mudaria. Era a sua grande oportunidade.

Interpretando mal o seu silêncio, a atriz emitiu um gemido de impaciência.

– Não tens ideia do que é atuar ao lado de uma estrela de Hollywood. Não sabes o que significa que todo o público tenha vindo vê-lo a ele – lançou toda a força da sua raiva contra Katie: – O meu vestido poderia rebentar que os espetadores continuariam a olhar para ele! Mesmo que ficasse nua, ninguém se daria conta!

Horrorizada perante a ideia, Katie respirou fundo várias vezes.

– Por favor, acalme-se. São os nervos próprios da estreia. Está toda a gente assim.

– Exceto Nathaniel Wolfe! – exclamou a atriz. – É tão distante como a Antártida e igualmente frio. Ninguém se atreve a aproximar-se demasiado dele para não se magoar com todo aquele gelo.

– E, além disso, afundar-se-iam como o Titanic.

– Estás a dizer que me pareço com o Titanic?

– Não! – Katie decidiu que era mais seguro não continuar a falar. – Está muito bonita e o vestido assenta-lhe como uma luva.

– Não por muito tempo. Quando estou nervosa, só quero comer. E trabalhar ao lado de Nathaniel Wolfe stressa-me. Tu és jovem e bonita. Porque não estás nos bastidores com um sutiã acolchoado e uma t-shirt justa, como todas as outras raparigas?

– Fico ridícula com esses sutiãs e morreria se Nathaniel Wolfe reparasse em mim. Felizmente, nem sabe que existo. Chama-me «guarda-roupa». Não me fala sequer quando estou a vesti-lo. Está sempre ao telefone. Sustenha a respiração – Katie fechou o fecho e rezou para que aguentasse. Não queria ser ela a ter de comentar que comer uma tonelada de bolos entre a prova do guarda-roupa e a noite da estreia não era boa ideia. – Nathaniel Wolfe é tão famoso que me é impossível agir com naturalidade com ele. Quando entra no camarim, sinto um aperto no estômago, a boca seca e fico a olhar para ele como uma idiota. Além disso, é um quebra-corações e eu prefiro homens mais calmos – compôs-lhe o decote. – Já está. Prontinha. Boa sorte.

– Dá azar desejar boa sorte a uma atriz. Supõe-se que deve dizer-se «muita merda» ou algo parecido.

Katie suspirou.

– Tenho de ir vestir John of Gaunt.

Escapou para a sala do guarda-roupa, onde a sua amiga e assistente, Claire, estava a comer um chocolate e a ler uma revista cor-de-rosa às escondidas. Levantou o olhar com uma expressão culpada quando Katie entrou na sala.

– Oh, apanhaste-me a espiolhar a vida de outras pessoas... Para investigar, é óbvio – o seu sorriso transformou-se num sobrolho franzido quando olhou para a cara de Katie. – Vejo que vens de ajudar a horrível duquesa de Gloucester. Coube no vestido?

– Por pouco – Katie deixou-se cair numa cadeira. Doía-lhe a cabeça. – Vesti-la de púrpura é perfeito para o papel que interpreta, mas as cores escuras são implacáveis sobre a pele exposta e tenho a sensação horrível de que o vestido vai rasgar-se. Ainda há aspirinas?

– Acabo de tomar a última. E falando de dores de cabeça... – Claire passou-lhe a revista. – Não sei se queres ver isto, mas há aí uma ampla reportagem sobre a tua irmã: «Será Paula Preston a mulher mais bela do mundo?». Porque é que tu te chamas Field e ela, Preston?

– Ela não quer que ninguém nos relacione. Gosta de fingir que a sua família não existe – Katie ficou a olhar para a fotografia da sua irmã e, em seguida, pensou no quanto a sua mãe estava a lutar. Uma parte dela desejava agarrar no telefone e gritar. Queria recordar a Paula o que era a lealdade familiar e as prioridades, mas sabia que não teria sentido. – Quando vieram a público as dívidas de jogo do meu pai, ficou horrorizada. Eu também, é óbvio, mas Paula zangou-se muito com a minha mãe por lhe ter perdoado e ter continuado com ele durante tantos anos. Culpa-a de não termos dinheiro quando éramos crianças e diz que, se perder agora a casa, a culpa é dela. Não entende porque deveria pagar pelo que considera uma fraqueza da minha mãe.

– Que encantadora...

– Às vezes, não posso acreditar que sejamos da mesma família – Katie mordeu uma unha e, então, viu as unhas perfeitas da sua irmã na fotografia e deixou cair a mão sobre o regaço. – Era tudo demasiado sórdido para ela. Criou uma imagem perfeita de si mesma e não quer que os pecados do meu pai a manchem.

Claire tirou-lhe a revista da mão e arrancou as páginas da reportagem.

– Já está! – amachucou-as e atirou-as para o cesto do lixo. – Neste momento, está onde merece estar. E, agora, vou ver aquele perverso do Wolfe em cena. É uma noite histórica. Vens?

– Não. Tenho de voltar a dar uma vista de olhos aos meus desenhos e reler o guião até amanhã.

– Nunca poderás trabalhar em Hollywood se perderes a cabeça pelas estrelas.

– Eu não perco a cabeça.

– Claro que sim! Quando lhe tomaste a medida da coxa, ficaste vermelha como um tomate.

– Está bem, talvez me perca um pouco por Nathaniel Wolfe.

– O tipo é uma estampa, é claro.

Katie abriu uma garrafa de água.

– Sim, mas não é real. Consegues conhecer a sério um ator? Como sabes quando está a representar? – bebeu um gole de água. Ela sabia muito bem como era fácil acreditar que se conhecia alguém e, em seguida, descobrir que não era assim. – Quer dizer, se Nathaniel Wolfe alguma vez te dissesse que te amava, acreditarias nele?

– Ouvi-o a dizer ao encenador que a palavra «amor» tem quatro letras e que ele nunca utiliza palavras de quatro letras. Sabias que os bilhetes esgotaram em quatro minutos? É incrível! Sobretudo, tendo em conta que Shakespeare passa ao lado a muita gente. Aquele Macbeth a falar com a caveira...

– Hamlet – Katie tirou os sapatos e fletiu os dedos dos pés. – Era Hamlet.

– Não interessa. O que quero dizer é que poderia estar a recitar a sua declaração de impostos que o teatro continuaria cheio. Estamos a falar de Nathaniel Wolfe. Ganhou todos os prémios possíveis, exceto o Safira, o mais importante.

Katie pensou em toda a promoção que rodeava o prémio de cinema mais prestigiado do mundo.

– Já esteve nomeado três vezes.

– Suponho que seja o sonho de qualquer ator. A verdade é que, desta vez, o merece – disse Claire, com ar sonhador. – Inclusive quando está a declamar Shakespeare e não entendo uma palavra do que diz, não consigo deixar de o ouvir.

– É o que estou a tentar dizer-te. Chama-se controlo mental. É a voz... e aqueles olhos azuis incríveis.

– Já imaginaste como seria ter relações sexuais com ele? Pergunto-me se ficaria a olhar para ele de boca aberta...

– Essa é uma pergunta à qual nunca poderei responder-te. Nem sequer sabe que existo. Graças a Deus! – Katie tapou a garrafa de água e guardou-a na sua mala. – Escuta, sobre esta noite...

– Não vais desistir, portanto, nem penses! Começa às onze e temos de ter um aspeto realmente sensual. Veste alguma coisa decotada.

– Nem pensar! Ainda não entendo como deixei que me metesses nisto dos encontros rápidos.

– És linda, Katie. Achas que estás gorda só porque a tua irmã é a supermodelo Paula Preston.

– Sinto-me em baixo de forma. Quando esta peça acabar, serei mais disciplinada com o exercício. Quero estar esbelta. É deprimente ver Nathaniel Wolfe. O seu corpo é puro músculo – Katie fletiu os bíceps. – Eu mal tenho força para levantar a garrafa de água.

– Está impressionante com aquele casaco de couro que escolheste para ele. Tens um grande talento para saber que peça funciona melhor.

– Supõe-se que o guarda-roupa deve acompanhar a personagem na sua viagem emocional – Katie olhou para as calças de ganga rasgadas. – Dá-me medo pensar no que a minha roupa pode dizer da minha viagem emocional... Está claro que viajo em classe turística.

– O que a tua roupa diz é que és uma estilista de guarda-roupa com excesso de trabalho, mal paga e sem tempo para se preocupar com o seu aspeto.

– E com dívidas enormes.

– Tens um grande talento. Um dia, alguém te descobrirá.

– Bom, espero que seja em breve – sentiu um calafrio de pânico. – Os pagamentos da casa da minha mãe devoram tudo o que poupo. É como um monstro.

– Tens de dizer à tua mãe como estás a lutar. Não necessita de três quartos, pois não?

– É a casa onde viveu com o meu pai. Está cheia de lembranças – esgotada física e emocionalmente, Katie fechou os olhos. – Cada vez que vou vê-la, diz-me que viver naquela casa é a única coisa que a mantém viva desde que ele morreu. Apesar de tudo, a sua história de amor foi incrível. De qualquer forma, se conseguir este trabalho, vai correr tudo bem. Será mais um passo.

– Aposto que a tua irmã gostaria de saber que estás a trabalhar com Nathaniel Wolfe – Claire esticou as pernas. – Onde gostaste mais dele, no Homem Alfa ou no Atreve-te ou morre?

– No Homem Alfa.

– A sério? – Claire franziu o sobrolho. – Aí fazia de soldado das Forças Especiais. Não pensei que gostasses.

– Eu adorei a personagem, que se considerava muito dura, mas quando conheceu a filha do seu inimigo... – os olhos de Katie encheram-se de lágrimas. – A parte final em que se sacrifica para a salvar... Chorei durante dias. Já devo tê-lo visto centenas de vezes. Wolfe estava incrível no filme. E muito bonito. Se houvesse um prémio Safira para o ator mais bonito, tê-lo-ia levado ele.

– Falando dos Safiras... – Claire atirou-lhe a revista. – Dá uma olhadela ao resto quando tiveres tempo. Há um artigo sobre como vestir-se para a grande noite. Fazem previsões sobre quem usará o quê na cerimónia que se celebra dentro de duas semanas. Talvez te interesse.

– Porquê? Nunca me convidarão para a cerimónia dos Safiras. E não penso que permitam calças de ganga com buracos – Katie guardou a revista na mala para a ler mais tarde.

Claire consultou o seu relógio e levantou-se de um salto.

– Oh, olha que horas são... Faltam menos de cinco minutos. De certeza que não queres vir?

– Não, obrigada. Podes babar pelas duas.

 

 

Nathaniel dirigiu-se para o meio do palco e olhou para a escuridão. Não via o público. Não pensava nos críticos.

Era o rei Ricardo II, o rei maldito.

Abriu a boca para dizer as primeiras deixas a John of Gaunt quando um foco iluminou a primeira fila do público.

Segurando a coroa na mão, Nathaniel baixou o olhar e os seus olhos cravaram-se num rosto familiar. Familiar e, ao mesmo tempo, desconhecido. Vinte anos tinham provocado mudanças, mas não tantas para que as feições lhe fossem irreconhecíveis.

Perdeu a noção do tempo. As feições apagaram-se. E o passado regressou a uma velocidade vertiginosa, afetando a sua concentração. A visão momentânea despertou lembranças que voaram pela sua mente, deliciadas por se verem libertadas depois de tantos anos de encarceramento no seu cérebro.

Gritos e terror. «Basta, basta!» E sangue. Sangue por toda a parte. «Façam alguma coisa!»

Sentia-se impotente. Completamente impotente. Com o coração a pulsar-lhe com força, Nathaniel olhou para as mãos que seguravam a coroa. Não havia sangue. Tinha as mãos limpas, mas continuava sem conseguir mexer-se. Tinha a mente paralisada pelos fantasmas da sua impotência. A certeza de não ter agido consumia-o. A culpa zumbiu no seu interior como um inseto venenoso e perguntou-se como era possível ter calafrios e suar ao mesmo tempo.

Ligeiramente consciente do murmúrio que começara a elevar-se entre o público, Nathaniel fez um esforço decidido para se concentrar.

«Ricardo», pensou desesperadamente. «O rei Ricardo.»

Agarrou a coroa com força e tentou voltar a meter-se na pele da personagem, mas já não entrava bem. O controlo escapava-lhe.

Cada vez que abria os olhos, via a mesma cara a olhá-lo da primeira fila, recordando-lhe que não era o rei Ricardo II. Era Nathaniel Wolfe, um ator com um passado familiar mais trágico do que as obras de Shakespeare.

Se o dramaturgo fosse vivo, pensou Nathaniel, com amargura, teria escrito a história da família Wolfe como uma tragédia em três atos.

Nada de comédia. Nada de finais felizes. A vida na sua maior escuridão. Desesperado, tentou abrir caminho para a superfície através da escuridão, mas sentiu que se afundava no lodo do passado.

Porque tinha escolhido aquele momento para voltar, quando todos já tinham reconstruído as suas vidas? A raiva atingiu-o com força. Tinha de avisar Annabelle. Pelo menos, podia fazer isso. Tinha de entrar em contacto com ela naquele preciso instante.

O murmúrio de surpresa do público converteu-se num zumbido inquieto. Os espetadores que tinham pensado que parara para dar mais ênfase à sua entrada deram-se conta de que estavam enganados. Surgiram vozes. Endireitando os ombros, como um lutador a preparar-se para o impacto, Nathaniel tentou mais uma vez dizer as suas primeiras deixas, mas nem sequer foi capaz de as recordar. Preso no passado, o muro que tinha erguido entre ele e o mundo desmoronou-se. Despojado da sua camuflagem, viu-se obrigado a meter-se na pele da única personagem que tinha evitado interpretar toda a sua vida: Nathaniel Wolfe.

Da última vez, tinha-a dececionado. Daquela vez, não o faria.

– Senhoras e senhores – a sua voz, fria e carente de emoção, chegou até ao fundo da sala. Fez um esforço para não olhar para o homem que estava na primeira fila. Teve de se dominar para não descer para a plateia e agarrá-lo pelo pescoço, – a representação desta noite foi cancelada. Por favor, passem pela bilheteira para que vos devolvam o dinheiro.

 

 

Quando terminou de preparar a entrevista do dia seguinte, Katie saiu da sala do guarda-roupa. O teatro estava silencioso. Toda a gente estava a ver Nathaniel Wolfe.

Inspirou os aromas e a atmosfera. O edifício estava impregnado de história. Quantos atores e atrizes famosos teriam subido ao palco daquele teatro? Por um instante, voltou a ser uma menina de seis anos que brincava com a sua irmã.

«Tu não podes ser a princesa, Katie. És muito gorda e tens o cabelo demasiado encaracolado. Eu sou mais bonita, portanto, eu serei a princesa. Tu podes vestir-me.»

O que começara como uma obrigação convertera-se numa paixão. Quando Paula decidira que não ficava bem sair com a irmã rechonchuda, Katie continuara a vestir as suas amigas. Todas as tardes, depois das aulas, interpretavam alguma obra e Katie decidia o que vestiam. Adorava experimentar combinações diferentes, gostava do desafio de desenhar roupas que transmitissem a essência de cada personagem. Uma princesa com uma espada. Uma fada de calças e botas. Tinha vestido as suas amigas, as suas bonecas, a sua mãe...

A única pessoa que não tinha voltado a vestir fora Paula, cujos sonhos de ser modelo a tinham levado para muito longe das suas raízes humildes.

Mas Katie continuara a sonhar.

Um ruído fê-la voltar ao presente. Katie virou a cabeça e escutou. O que começara como passos poderosos transformou-se numa corrida. Ela franziu o sobrolho e ficou onde estava, disposta a dizer a quem quer que fosse que aquele barulho poderia provavelmente ouvir-se em todo o West End londrino.

Quem poderia estar a correr? Provavelmente, algum funcionário sem experiência. Ao dar-se conta de que os passos se aproximavam dela, Katie afastou-se rapidamente, mas já era demasiado tarde. Um corpo masculino embateu contra o seu. Não houve tempo para gemer, nem para gritar. Caiu para trás e preparou-se para chegar ao chão, mas umas mãos fortes agarraram-na repentinamente.

Ao ver-se apanhada contra aqueles músculos, algo se derreteu no seu interior. Foi uma reação elementar que ultrapassava o bom senso e cujo poder a desconcertou.

Ossos firmes, cabelo preto e uns olhos que poderiam levar uma mulher a esquecer o seu próprio nome.

– Oh... Senhor Wolfe, não esperava vê-lo aqui. Quer dizer, sei que está a representar aqui, portanto, sim, esperava vê-lo, mas não neste preciso instante e ainda menos a correr pelos bastidores. Aconteceu alguma coisa? Bom, está claro que sim... – balbuciou. – Caso contrário, não estaria a correr pelos bastidores como uma manada de elefantes, mas...

– Ele está aqui – as mãos de Nathaniel agarravam-na com tanta força que Katie estremeceu.

– Quem? – ficou a olhar para ele como uma tola, com o coração a pulsar-lhe a toda a pressa no peito e a boca seca. Ao tê-lo tão perto era-lhe impossível não olhar fixamente para ele. Era incrivelmente sensual, cada traço das suas feições perfeitas acentuava a sua masculinidade. Tentou desesperadamente dizer algo lúcido, mas sentia-se como se tivesse o cérebro anestesiado. – Senhor Wolfe?

– Porquê agora? – aqueles olhos azuis brilhavam com raiva. – Porquê? – largou-a e deu um murro numa parte descartada do cenário. Respirando agitadamente, levou os dedos à testa. – Não posso... Eu... Tenho de avisar Annabelle...

Quem era Annabelle?

– Bom, vejo que está agitado – Katie deu um passo cauteloso para trás enquanto via como ele tirava o telefone do bolso e marcava um número.

Tinha os nós dos dedos arranhados, mas não parecia dar-se conta. Naquele instante, entendeu porque é que Nathaniel Wolfe era tão bom a interpretar heróis atormentados. Sob aquele físico perfeito e um rosto tão belo havia um homem tão atormentado como as personagens que interpretava. E isso fazia parte do seu encanto, era óbvio. Havia uma parte dele indómita e perigosa. Observando a dureza dos seus maxilares e da sua boca, pensou no soldado das Forças Especiais que tinha interpretado no seu último filme de ação, Homem Alfa. Era o caçador.

E, naquele momento, não estava a representar, sabia que não estava a representar. E não tinha nenhum sentido tentar convencê-lo a voltar para o palco. Era um homem que só seguia as suas próprias regras.

Katie olhou à sua volta, desejando desesperadamente que aparecesse alguém que se encarregasse da situação. Onde estava o encenador?

Nathaniel segurava o telefone contra a orelha e mexia-se tropegamente. Sempre o vira a agir com extrema calma. Em algumas ocasiões, mostrava-se sarcástico, com frequência, aborrecido, mas nunca fora de controlo.

Naquele instante, parecia fora de si. O cinismo fora substituído por algo próximo do desespero.

– Há alguma saída que a imprensa não conheça?

– Uma saída? – Katie tentou respirar fundo, mas havia algo na intensidade do olhar de Wolfe que a impedia de fazer outra coisa que não fosse olhar fixamente para ele. Nunca o tivera tão perto e era impressionante.

– Se Carrie souber, vai rebentar tudo. Atende, bolas! – estava claro que ninguém atendia e, finalmente, deixou uma mensagem curta e misteriosa no atendedor de chamadas antes de voltar a guardar o telemóvel. Então, agarrou Katie pelo braço e disse, com tom desesperado:

– Tens de me tirar daqui. Depressa.

Katie olhou para ele com severidade. Duas mulheres, pensou, Annabelle e Carrie, dissera ele. A história típica de infidelidade. Mas ficou paralisada ao ver o desespero nos seus olhos. Compreendeu que tinha cometido um erro tremendo ao julgá-lo tão depressa.

Não era o caçador. Era a presa. Algo ou alguém estava a persegui-lo.

– Há uma saída de emergência na sala do guarda-roupa. Dá para uma das ruas laterais – sem parar para pensar, agarrou-lhe a mão e levou-o para a sala. Fechou a porta atrás deles. – A saída de emergência é ali. Boa sorte.

– Não posso fazer isto sem ajuda! – puxou-a para si. – Onde vives? A tua casa fica longe daqui?

A Katie tremeram-lhe os joelhos.

– Deve estar a brincar! Quer dizer, tem uma suíte no Dorchester e...

– Será o primeiro sítio onde procurarão. A imprensa acampou do lado de fora desde que o meu avião aterrou.

Katie imaginou Nathaniel Wolfe no seu apartamento minúsculo e ruborizou-se.

– A minha casa é muito pequena. Sinceramente, não penso que...

– Por favor! – agarrou-lhe a cara entre as mãos, de modo que Katie não teve outro remédio senão voltar a olhar para ele. Perdeu-se naqueles olhos azuis, esqueceu onde estava. Esqueceu quem era. Recordava vagamente que lhe tinha pedido algo, mas tinha os olhos cravados nos seus e...

– Katie?

Sentindo uma excitação sexual que nunca experimentara, arqueou-se contra ele.

– Hum?

– Katie! – Nathaniel estalou os dedos diante da sua cara e quebrou o feitiço.

Abanando a cabeça para esclarecer as suas ideias confusas, Katie sentiu-se como se estivesse a sair de um transe.

– Sabe... Sabe o meu nome...

– Tenho por hábito ficar a saber o nome de todas as mulheres que me medem a coxa – brilharam-lhe os olhos. – Vamos sair daqui, meu anjo. Não quero ser o jantar dos paparazzi.

Sempre disposta a ajudar quem estivesse em apuros e emocionada pelo facto de ele saber o seu nome, Katie ignorou a voz interior que estava a avisá-la de que era um grande erro.

– Está bem, mas não sei o que vai parecer-lhe a minha casa comparada com o Dorchester. Não diga que não o avisei – agarrou no casaco e nos dois capacetes, e ofereceu-lhe um deles.

Ele ficou a olhar.

– Para que é isto?

– Se vamos fugir, necessitamos de um veículo. Tenho uma mota lá fora. É rápida e perfeita para atravessar o trânsito de Londres. Ponha o capacete, tapar-lhe-á a cara. Não é que tenha de a tapar, porque é maravilhosa, mas... – ruborizou-se e pôs-lhe o capacete nas mãos. – Assim, será muito mais fácil.

Escutaram-se vozes do outro lado da porta e alguém bateu com força.

Katie tomou as rédeas do assunto. Aproximou-se e pôs-lhe o capacete na cabeça.

– A saída de emergência deve estar cheia de gelo no chão. Tenha cuidado para não escorregar. Sinto-me estúpida ao dizer-lhe isto, pois faz todas aquelas cenas de ação. Tenho a certeza de que uma saída de emergência cheia de gelo não será nenhum desafio.

Nathaniel tinha outra vez o telefone na mão.

– Preciso de fazer outra chamada...

– Quando chegarmos a minha casa – Katie absteve-se de lhe dizer que, se não estivesse com mais de uma mulher ao mesmo tempo, não se veria naquela situação desesperada. Dizendo a si mesma que a vida amorosa complicada de Nathaniel Wolfe não lhe dizia respeito, agarrou-o pelo braço. – Se não quiser ver-se diante de centenas de máquinas fotográficas, então, temos de sair já daqui.